Buscar a erradicação do trabalho escravo através da educação: essa é a ideia do
Programa Escravo, nem pensar,
criado em 2004 pela ONG Repórter Brasil. Em dezembro, a ONG fez um
balanço do trabalho educativo junto a lideranças locais, sindicados e
redes de ensino na cartilha "Experiêncas Comunitárias de Combate à
Escravidão".
Todos os anos o programa, que tem sede em São Paulo e em Araguaína,
no Tocantins, financia projetos que tratam o tema em municípios com alto
índice de tráfico de seres humanos para o trabalho escravo ou em locais
onde há flagrantes desse crime, formando educadores e expondo a questão
aos moradores.
Os projetos realizados este ano estão reunidos na cartilha, lançada
em dezembro pelo programa Escravo, nem pensar. Em entrevista à
Caros Amigos a coordenadora do programa, Natália Suzuki, fala da experiência e do panorama do trabalho escravo no Brasil.
Você poderia contar o que é o Programa Escravo, nem Pensar?
É
um projeto que basicamente atua na área de educação, principalmente nos
locais onde o problema do trabalho escravo é crítico. Hoje o programa
age nos Estados onde esse problema é mais recorrente (Bahia, Maranhão,
Mato Grosso, Pará, Piauí e Tocantins). Ao todo são 45 municípios onde
nós já fizemos trabalhos de formação e acompanhamento junto às
secretarias municipais e estaduais.
As atividades se dão por meio de formação junto à comunidade escolar,
porque isso tem um efeito multiplicador, e abordam não só o tema do
trabalho escravo, mas questões correlatas, como meio-ambiente,
exploração sexual e tráfico de pessoas, porque o trabalho escravo não é
um fenômeno isolado, tem um contexto social e econômico que dá condições
para que ele aconteça e se mantenha.
Quais as ações do programa?
Nós
tentamos trabalhar com parceiros locais, que podem ser a comunidade ou a
área de educação, como secretarias estaduais e municipais de educação e
escolas da região. A gente faz esse trabalho de formação sobre trabalho
escravo, e em algumas situações esse tema é incorporado ao currículo
formal, e os professores abordam essa questão nas suas dinâmicas
cotidianas. Nós temos também parcerias com organizações de direitos
humanos e sindicatos de trabalhadores.
As ações dependem muito das parcerias que a gente desenvolve
localmente, mas o trabalho do programa é sempre na área de formação para
prevenção do problema do trabalho escravo, tentando fazer com que a
comunidade da região se conscientize sobre a questão e aborde o tema,
porque em alguns lugares o trabalho escravo é tão enraizado e recorrente
que as pessoas não percebem que isso não é natural.
Recentemente o Projeto Escravo,
nem pensar lançou a cartilha “Experiências comunitárias de combate à
escravidão 2011”. Você poderia contar um pouco sobre ela?
A
cartilha se refere a essas iniciativas que o programa apoia, e que em
2011 foram financiadas por ele. Ela traz um resumo do que foi cada uma
delas, e descreve como as iniciativas pensaram a questão do trabalho
escravo em suas cidades, no contexto local.
Esse trabalho é interessante porque não só as pessoas que estão
ligadas diretamente a esses pequenos projetos se apropriam do tema, de
repente um aluno participa do projeto e leva informações para casa, para
os pais, e o tema acaba tendo alcance extraescolar.
A própria comunidade se mobiliza e tem uma iniciativa própria para
desenvolver alguma dinâmica em relação ao problema do trabalho escravo,
então os projetos têm o efeito tanto de mobilização da região como de
formação do professor, e a consequência disso é a prevenção do trabalho
escravo.
Que resultados vocês já puderam perceber desde que o programa começou?
Nós
já formamos quase 2500 educadores e lideranças populares nesses seis
estados onde atuamos. O programa faz acompanhamentos e depois de algum
tempo retorna ao lugar que foi feita a formação para ver como o tema do
trabalho escravo tem sido tratado. Quando os profissionais retornam
nessas cidades é possível identificar muitas melhorias, e a incorporação
do tema no dia-a-dia da região.
A questão do trabalho escravo está muito ligada à violência,
repressão e opressão no campo, então muita gente tem medo de falar. Por
meio das formações nós acabamos quebrando algumas barreiras e as pessoas
começam a tratar do assunto.
Nós temos relatos de trabalhadores que se envolveram nas formações
dizendo que até antes de receberem informações sobre o tema não tinham
consciência de que um dia tinham sido submetidos a condições degradantes
de trabalho, que é uma das características do trabalho escravo. Quando
eles se vêem nessa situação, se reconhecem vítimas desse problema, a
tendência é que eles não aceitem mais esse tipo de coisa. É um trabalho
de conscientização.
Além disso, algumas secretarias incorporaram o tema do trabalho escravo
no currículo formal, então fica determinada a abordagem do tema no
dia-a-dia da escola.
Muitos projetos financiados pelo
Programa Escravo, nem pensar se utilizaram de atividades culturais.
Você poderia falar um pouco sobre esse aspecto?
As
intervenções culturais têm um papel de identificação da comunidade. Às
vezes essa é a forma mais apropriada de expor o tema, porque é a maneira
como a comunidade consegue juntar mais pessoas. Como são as comunidade
que desde o início pensam no projeto, ninguém melhor do que elas para
avaliar o que faz sentido naquela realidade.
Para nós é muito gratificante ver essas intervenções culturais, ver o
problema do trabalho escravo permear a esfera cultural da comunidade. É
importante eles poderem pensar as iniciativas criativamente e não
apenas com livros.
Um dos projetos apresentados na
cartilha se chama “Escravidão feminina no mundo contemporâneo”. Quais as
diferenças entre o trabalho escravo feminino e masculino?
Acho
que a gente poderia mudar a abordagem e pensar qual a finalidade do
trabalho escravo e quem são as pessoas arregimentadas por esse tipo de
trabalho. Os homens, que são em sua maioria jovens, são destinados
principalmente ao trabalho no campo, na pecuária, cultivo de soja,
carvoarias, etc., pela força física.
As mulheres são, em grande parte, destinadas à exploração sexual,
cerca de 80% do tráfico de mulheres é destinado a este fim. O
aliciamento também é diferente. No caso das mulheres tem sempre a
história de que “Em um país rico, como Espanha, você vai ter uma
qualidade de vida melhor, vai trabalhar como babá, ganhar um dinheiro e
voltar para o Brasil ganhando seu salário em Euro”.
No trabalho escravo masculino tem muitos homens que vão procurar
emprego em fazendas em outras cidades ou estados e a figura do gato os
alicia, dizendo “Tem a fazenda xis, que está precisando de trabalhador
para a plantação, carvoaria”.
Quais as diferenças entre a escravidão urbana e rural?
No campo a escravidão está ligada ao cultivo, carvoaria e pecuária, e
na região urbana está ligada à tecelagem. Mas se você quiser
generalizar, todas elas apresentam condições degradantes e/ou
cerceamento de liberdade, por exemplo, alojamentos precários, jornadas
longas, com pouco ou nenhum descanso, salário baixíssimo, maus-tratos
físicos e psicológicos e ameaças.
Em muitos casos os salários ficam vinculados a dívidas
pré-existentes, no caso de imigrantes e migrantes ele fica vinculado ao
pagamento de passagens. Existem pessoas que não podem deixar o
alojamento, então têm que consumir a comida que a venda da fazenda
proporciona, que tem o preço inflacionado ao máximo. Isso vai sendo
anotado no caderninho e o trabalhador vai acumulando uma dívida, que
comparada ao teórico pagamento, que é muito baixo, nunca chega a zero.
E, claro, tem o cerceamento de liberdade, fica sempre alguém vigiando
o trabalhador para ele não fugir, não sair. Se ele sai tem que pedir
autorização, falar para onde vai, quando vai, quando volta e até no
final de semana tem cerceamento.
Você poderia falar sobre o processo para um trabalhador se tornar escravo?
Um
fenômeno anterior ao problema do trabalho escravo é o tráfico de
pessoas. Pessoas que estão em uma condição de vulnerabilidade
sócioeconômica são sempre o alvo mais fácil do tráfico e depois do
trabalho escravo. A pessoa vai em busca de trabalho porque está em uma
situação difícil, topando tudo pela sobrevivência.
Tem sempre a figura do gato, que oferece o trabalho em um lugar que
normalmente é distante do local de origem desse trabalhador e ele acaba
perdendo o vínculo com a família. Quando o trabalhador vai ver, o lugar
de moradia é degradante, e ele está em uma situação em que não pode sair
do lugar, porque não encontra condições para sair ou é forçado a ficar
com o uso de violência. Ele também é obrigado a trabalhar em jornadas
extensas.
No caso do tráfico interno ou internacional de mulheres, ela vai com a
promessa que vai trabalhar em um salão de beleza ou como babá, e quando
chega lá é um bordel e ela é obrigada a se prostituir. Tiram o
passaporte dela, fazem ameaças e se a mulher se nega a trabalhar falam
que vão matar a família dela no Brasil.
Em São Paulo existem casos de estrangeiros trabalhando como escravos. Você poderia falar sobre essa questão específica?
Esses casos têm sido evidentes, por exemplo, com o caso da Zara (
que em agosto foi flagrada utilizando mão de obra escrava na confecção de suas roupas). O Brasil é um dos poucos países que é destino, origem e lugar de tráfico de pessoas.
No caso dos bolivianos o processo é a mesmo. A situação é difícil lá,
e tem alguém que faz uma promessa, fala que em São Paulo tem muita
tecelagem, que a pessoa vai ganhar muito dinheiro e depois de seis meses
vai conseguir voltar, com uma condição boa para ajudar a família. Em
São Paulo em geral existe a questão da dívida da passagem e a pessoas
acaba se endividando.
Na sua opinião, como o Brasil conseguirá erradicar o trabalho escravo?
Essa
é uma pergunta complicada, pela magnitude do problema. Uma erradicação
precisa ter antes de tudo o envolvimento do Estado, mobilização da
sociedade civil, ações coordenadas e penalização aos responsáveis,
porque a questão da impunidade é muito séria. Algumas pessoas têm que
perceber que empregar trabalho escravo, apesar do que elas pensam, é
custoso. Se elas estão ganhando na produção, se um produto acaba saindo
mais barato porque ela paga R$ 0,40 na produção de um vestido ou porque
ela não paga nada para o trabalhador que corta cana, ela tem que
entender que vai ter um custo, que é a penalização na Justiça.
Tem que haver uma ação articulada entre os órgãos do Estado, como
Ministério Público e Polícia Federal e no caso da prevenção as
secretarias e ministérios. A mobilização da sociedade civil continua
importantíssima, porque no limite somos nós que estamos na ponta e
estamos vendo o problema acontecer, então é a organização de direitos
humanos do Tocantins que lida com o problema todos os dias, é a
organização do Maranhão que recebe denúncias do trabalhador, é a
organização do Pará que acolhe o trabalhador que está sendo perseguido.
Esse é um problema que, apesar de não estar visível diariamente aos
olhos de muita gente, está presente em muitos produtos que você consome,
da sua carne à roupa que você veste.
Fonte: Caros Amigos